13/10/2021 - China e Estados Unidos, os dois gigantes da economia global, vivem nos últimos anos um ambiente que tornou as relações ainda mais agudas. A era Donald Trump aprofundou o clima de animosidade e a troca de acusações. A pandemia foi o empurrão para amplificar as desconfianças. O tensionamento desencadeou mudanças de estratégia das multinacionais, principalmente as americanas, que tinham na China seus principais centros de abastecimento. Com cautela, algumas empresas começam a estudar formas de redistribuir sua produção para outros países – tanto na própria Ásia quanto no continente americano. O processo tem sido gradual porque a China é, desde o início da pandemia, um dos países com a economia menos comprometida pela desaceleração global. O país asiático cresceu 1,8% em 2020, enquanto a retração global, segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), foi de 4,2%. Agora, com o agravamento da crise energética, que tem interrompido as jornadas nas fábricas, surge um novo desafio nas cadeias de suprimento, principalmente de tecnologia – o que pode apressar o movimento das companhias transnacionais para outros mercados produtores. Entre fevereiro e março de 2020, a consultoria Gartner fez uma pesquisa com 260 líderes globais da cadeia de suprimentos e chegou a um dado representativo desse movimento. Ao todo, 33% dos entrevistados informaram ter transferido as atividades de abastecimento e manufatura para fora da China ou planejam fazê-lo nos próximos dois a três anos. No entanto, a pandemia não é a única responsável, alertou o levantamento. A partir da potencialização da guerra comercial entre EUA e China, entre 2018 e 2019, as cadeias de suprimentos globais já estavam sendo interrompidas, alertando as companhias sobre a lógica de redes fortemente terceirizadas, concentradas e interdependentes, apontou a pesquisa da Gartner. Além disso, vinha pesando no custo de produção as tarifas impostas pelo governo de Donald Trump sobre as importações vindas da China. Segundo apontou publicação Nikkei Asian Review, em meados de 2019, cerca de 50 multinacionais anunciaram planos de transferir a produção para fora da China para buscar uma estratégia de uma produção mais regional. Foi o caso da GoPro, que anunciou que transferiria a produção da maioria de suas câmeras destinadas aos EUA da China para o México. Em novembro passado, a imprensa internacional noticiou que a Foxconn estava transferindo parte da manufatura do iPad e do MacBook da China para o Vietnã. “As tarifas impostas pelos governos dos EUA e da China nos últimos anos aumentaram os custos da cadeia de suprimentos em até 10% para mais de 40% das organizações. Para pouco mais de um quarto dos entrevistados, o impacto foi ainda maior”, declarou Kamala Raman, executiva da Gartner, sobre os resultados da pesquisa. Entre os novos destinos estão Vietnã, Índia e México. Ainda segundo a consultoria, um quarto das empresas disseram já ter regionalizado a produção com o objetivo de estar mais perto da demanda. Se hoje as empresas americanas incluem em seus planejamentos a busca de alternativas à produção em território chinês, o que se viu nas últimas décadas mostra como o fluxo de capital se comportou. O investimento estrangeiro direto (IED) da China em todas as indústrias dos EUA, entre 1990 e 2020, soma US$ 175,52 bilhões. Já o IED americano no mesmo período destinado ao país asiático somou US$ 284,9 bilhões, como mostra levantamento da ONG US-China Investment Hub. Efeito-pandemia Com receio dos efeitos prolongados da pandemia no setor industrial chinês, muitas empresas começaram a estudar a reformulação de suas cadeias globais de suprimentos por achar que não poderiam confiar em uma fábrica só, ainda mais na China, tão longe do país-sede, explica Ricardo Mendes, sócio da Prospectiva Consulting. “A pandemia criou uma disrupção grande nas cadeias de fornecimento. Os portos fechados na China geraram um grande problema de logística, que acabou deixando nebuloso o clima que já era de guerra fia e que andava no paralelo.” Regis Arslanian, embaixador do Brasil que atuou em Washington, no Mercosul, nas negociações da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e nas rodadas multilaterais Uruguai e Doha, também chama a atenção para o papel que a crise de saúde teve no esgarçamento acelerado das relações. “A pandemia foi uma espécie de gatilho da percepção de que era preciso compor a cadeia global de valor por meio da diversificação de países fornecedores. Foi como se a indústria americana passasse a se perguntar sobre o porquê de se produzir componentes do outro lado do mundo. Por isso temos visto muitas corporações revendo seus planos e buscando alternativas para fabricar em países mais próximos, seja no México ou em alguns países da América Central”, avalia o embaixador. Para o professor de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV), Pedro Brites, o que se vê do lado americano é a construção de uma rede legal para mudar o perfil de investimentos internacionalmente e recuperar o protagonismo global. Nesse novo contexto, avalia o professor, a América Latina está sendo colocada como prioridade. “Ainda não se vê uma migração significativa de empresas americanas da China para outros país, mas há indícios de que os EUA querem seu papel nesse ambiente de competição”, diz Brites. Segundo o professor, mais do que estimular a reconstrução das capacidades produtivas das empresas americanas em outras regiões, o que o governo americano visa é melhorar sua posição na competição estratégica entre os dois países. “A China ganhou muita força política e econômica também na pandemia por conta da produção de vacinas e de outras questões sanitárias. Tanto é assim que os EUA, com Joe Biden, agora tentam correr atrás na distribuição de vacinas. Houve um entendimento de que a China é o grande competidor no sistema internacional”, analisa o acadêmico. Papel da América Latina e do Brasil A transferência de parte da produção dos EUA, hoje na China, para outros mercados pode não apenas desafogar sua indústria (receosa com as incertezas no país asiático), mas também fortalecer o papel da maior economia do mundo em relação aos grandes parceiros comerciais e na diplomacia, e abrir uma oportunidade para ajudar a se reposicionar no próprio continente americano, avalia o sócio da Prospectiva Consulting. Por exemplo, na questão migratória. Investimentos na geração de postos de trabalho na América Central, por exemplo, poderiam conter as ondas migratórias de países da região para os EUA. Nesse novo arranjo político e produtivo puxado pelos americanos, o Brasil também pode ter um novo papel, analisam os especialistas ouvidos pelo CNN Brasil Business. “Há uma oportunidade para a América Latina e particularmente para o Brasil, o maior país e o mais tecnológico, que deveria fazer o dever de casa para ser mais competitivo e absorver esse esforço de diversificação das cadeias globais de valor”, comenta Arslanian. Já o professor da FGV não vê o Brasil entre as prioridades do governo americano. Primeiro, pelo não alinhamento entre os governos dos dois países. Brites aponta ainda a questão logística, como a falta de acesso ao oceano Pacífico. Para o estudioso, quem mais vai ganhar é o México, que já tem acordos mais profundos com os EUA. Seja qual for a estratégia americana para esvaziar o papel chinês no tabuleiro global, será preciso se preparar para algumas dificuldades, diz o sócio da Prospectiva. “Substituir a China não é muito fácil por causa da forma como o país construiu seu posicionamento ao longo do tempo do posto de vista tecnológico e de capacidade de produção. Poucos destinos no mundo combinam escala, engenharia e tecnologia para a produção como a China. Por isso, para encontrar outras opções, será preciso um tempo de qualificação de fornecedores e da mão-de-obra nos países. Mas acredito que não será um período tão longo, porque o drive político nos EUA é forte, com uma pressão política sobre as empresas para que reduzam o papel chinês”, afirma Mendes. Guerra fria 4.0 No campo militar também há sinais de aumento de tensão entre EUA e China, detentores dos maiores orçamentos de defesa. Logo depois de Joe Biden, presidente americano, e Xi Jinping, o líder chinês, trocarem alfinetadas na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em 21 de setembro, foi a vez dos responsáveis pelas áreas de segurança dos dois países fazerem ameaças. A primeira provocação veio do secretário da Força Aérea, Frank Kendall, ao comentar que os Estados Unidos precisavam preservar a liderança tecnológica para manter a “China assustada”, nas suas palavras. No dia 29, foi a vez de Wang Wei, comandante-adjunto da Força Aérea chinesa, devolver a provocação. “Só posso dizer que, se eles não estão assustados [com a tecnologia militar chinesa], vamos nos encontrar no céu.” 5G As disputas entre China e EUA incluem a corrida pelo fornecimento de infraestrutura para a frequência do 5G – tema do momento no Brasil. Desde o governo do republicano Donald Trump, os EUA tentam excluir a China do fornecimento de infraestrutura do 5G – uma das frentes tecnológicas dominadas pelo país asiático. Em agosto, o diretor sênior do Conselho de Segurança Nacional para o Hemisfério Ocidental da Casa Branca, Juan González, disse em visita ao Brasil que o governo deveria considerar a eventual escassez de chips que poderá ameaçar a chinesa Huawei e seus possíveis efeitos entre os consumidores brasileiros. O fornecimento de equipamentos para a implantação do 5G no Brasil é apenas mais uma das disputas que polarizam chineses e americanos. A guerra comercial e diplomática, potencializada pela pandemia e pela desaceleração da economia global, serviu para amplificar as desconfianças e chegou às estratégias das multinacionais, principalmente as americanas, que tinham na China seus principais centros de abastecimento. O leilão brasileiro das faixas de frequência vai acontecer em 4 de novembro. Em jogo, contratos vultosos. A expectativa é que se chegue a R$ 49,7 bilhões entre outorgas das faixas de frequência e investimentos, com previsão de alcançar R$ 163 bilhões de recursos em rede em duas décadas, segundo o governo. São cifras que interessam a empresas e a governos que buscam oportunidades para fortalecer suas indústrias. A Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) publicou no dia 27 de setembro a versão definitiva do edital do 5G. Para os brasileiros, a próxima geração de rede de internet móvel vai representar ganhos no uso diário do smartphone. Para o setor produtivo, marcará uma nova etapa na indústria 4.0. Mas o leilão brasileiro também será marcado por um histórico de anos de disputas entre as duas maiores economias globais: China e Estados Unidos.
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